quinta-feira, 3 de junho de 2010

OS ÚLTIMOS MOMENTOS DE CANUDOS

Por José Gonçalves do Nascimento

Entre 1893 e 1897, poucos anos após a proclamação da República, a Bahia se apresentava como cenário de um dos mais extraordinários exemplos de mobilização popular que a história brasileira já registrou: o arraial de Canudos ou Belo Monte. Edificado por Antônio Conselheiro e seus seguidores, Canudos representou o anseio de liberdade que, há séculos, era alimentado pelos pobres do Nordeste. Ali, os sertanejos puderam, finalmente, adquirir sua tão sonhada autonomia. Livres do domínio dos coronéis e conduzidos pelos ideais de uma vida nova, eles foram responsáveis pela construção de um modelo alternativo de sociedade, onde teve lugar a prática da partilha e da solidariedade. Em pouco tempo, o arraial sertanejo se transformou num dos maiores aglomerados populacionais da Bahia, chamando a atenção do país e tornando-se, como alegava o barão de Jeremoabo, “a questão do dia que preocupa todos os espíritos lúcidos” do Brasil. Completamente insubmissa aos ditames do regime republicano, que acabava de se instalar no país, a comunidade de Canudos acabou despertando a ira das elites brasileiras, as quais resolveram apelar para o ataque. Era a Guerra de Canudos.

Em novembro de 1896, o governo republicano, apoiado pelos latifundiários e pela cúpula da Igreja Católica, declara guerra à “aldeia sagrada” dos sertanejos. Para exterminar Canudos, o Estado Brasileiro mandou ao sertão da Bahia nada menos que quatro expedições militares, totalizando um contingente de mais de 12 mil homens em armas - mais da metade do efetivo do Exército naquele momento. A capacidade bélica dos sertanejos, inicialmente subestimada, surpreendeu os inimigos. A cada batalha travada, as forças legais sofriam novas baixas e o poder de fogo dos canudenses saía fortalecido. As três primeiras expedições, que juntas totalizavam mais de 2 mil homens, foram esmagadas fragorosamente. As sucessivas derrotas puseram em pânico o Governo da República, que passou a ver em Canudos um perigo cada vez mais real e assustador. Impunha-se, portanto, que se tomassem medidas mais enérgicas. Afinal de contas – acreditava-se – era o destino da República que se encontrava em jogo. O Governo não tardou e uma nova expedição foi mandada às terras sertanejas, dessa feita, com mais de 10 mil soldados. As elites, então, puderam respirar aliviadas. Canudos, finalmente, estava liquidado. No conflito, morreram cinco mil soldados e todos os habitantes do burgo conselheirista.
No dia 5 de outubro de 1897, se deram os combates derradeiros. Era o desfecho de quase um ano de luta renhida, em que brasileiros guerrearam contra brasileiros. A seguir, os últimos lances dessa epopéia, na visão de testemunhas oculares.

"Canudos não se rendeu. Exemplo unico em toda a historia, resistiu até ao exgottamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, cahiu no dia 5, ao entardecer, quando cahiram os seus ultimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dous homens feitos e uma creança, na frente dos quaes rugiam raivosamente 5 mil soldados”

Euclides da Cunha [Os Sertões] correspondente do Jornal O Estado de São Paulo em Canudos, 1897)


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“Ao clarear do dia 5, já pouco movimento se observava no centro inimigo; o fogo era fraquissimo e, nem mesmo mulheres se viam mais. Os soldados, impacientes, foram pouco a pouco se introduzindo nas ruinas dos fanaticos e, dahi a momentos, tinham varejado casa por casa, cujas paredes ainda se mantinham de pé, examinado vallas, subterraneos e tudo quanto havia de mysterioso ali. Os ultimos atiradores que encontraram ainda, de armas na mão, nervosos, alucinados, fazendo fogo sobre elles, morreram nessa occasião e sepultaram-se na mesma valla em que foram encontrados. Eram quatro: um velho, ferido na perna direita, um rapaz de 18 annos presumiveis e dois outros homens vigorosos. Estava tudo acabado (...) Difficilmente se descrevem quadros como os que se desdobram diante de nós! Quasi todas as casas tinham ardido inteiramente, o chão dir-se-ia tapetado de negro e cinza e, por toda parte, montões de cadaveres carbonisados, horrendos, nas ultimas posições dos musculos contraidos! As vallas que os desgraçados abriam para se occultar e donde nos alvejavam com a maior certeza, estavam repletas de cadaveres. Ahi morriam e ahi se depositavam. Os ultimos pouco se inquitavam com os que jaziam nesse estreito espaço rectangular, onde em breve estariam tambem sepultados. A maior parte dos corpos de crianças, tambem carbonisados, encontravam-se extremamente conchegados aos de adultos, cujo sexo feminino ainda se reconhecia (...) tudo, enfim, se tinha acabado ali. O exterminio absoluto do contendor suplantado - tal foi a conclusão dessa luta de horrores!"

(Emídio Dantas Barreto [Destruição de Canudos], oficial do Exército, integrante da 4ª expedição contra Canudos, 1897)


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“Quando ao amanhecer do dia 5 soldados invadiram francamente o recinto onde tão singulares cenas eram passadas, o fogo de fuzil cessara de todo. Findara a resistência por falta de atiradores entre o inimigo e o incêndio também completara a sua obra, só restando pequenas fogueiras e espirais de fumaça, surgindo entre os escombros das habitações. Poucas casas escaparam ao fogo, mais em ruínas, devido à metralha.
No entanto, na trincheira, no centro do reduto, permaneciam 4 fanáticos sobreviventes do extermínio.
Esses haviam terminantemente recusado entregarem-se à intimação dos soldados e fizeram fogo. Eram: um velho, coxo por ferimento e usando uniforme da Guarda Católica; um rapaz de 16 a 18 anos, um preto alto magro e um caboclo.
Ao serem intimados para deporem as armas, investiram com enorme fúria. O preto, empunhando um machado, descarregava sendos golpes. Num momento eram cadáveres, ficando entre os muitos apodrecidos no mesmo local. Assim, estava terminada e de maneira tão singularmente trágica a sanguinosa guerra...”.

(Henrique Duque Estrada de Macedo Soares, [A Guerra de Canudos] oficial do Exército, integrante da 4ª expedição contra Canudos, 1897)


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"A 5 de outubro, depois de uma resistência louca, digna de melhor causa, o inimigo sitiado pela sede que nele se fazia sentir horrivelmente, pela fome, pelo incêndio e pelas balas, entregou-se de vez, ou antes deixou se fazer ouvir pelo estampido dos seus bacamartes e detonação de suas armas, porquanto tinham perecido na luta todos os seus homens válidos, e quando as nossas forças penetraram no seu último esconderijo, ali se encontravam montão de cadáveres de homens, mulheres e crianças, que foi avaliado em número superior a oitocentos! O batalhão do Amazonas, tanto ou mais que nem outro, concorreu brilhantemente para o êxito final, batendo-se abnegada e heroicamente sem visar interesse de ordem alguma, e auxiliando por todos os modos o General-em-Chefe a debelar tão nefanda quanto desgraçada revolta”.

(Cândido José Mariano, [A Força Pública do Amazonas em Canudos] atuou contra Canudos, como comandante de um corpo da Polícia Militar do Amazonas, 1897)


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“No dia 5 uma fulgurante aurora rompe n’aquella zona, que em tudo quer provar de quanto é capaz a magnificencia de nossa natureza.

Não viam-se mais aquellas densas nuvens de neblina, que quotidianamente circundavam os montes situados em derredor, occultando o regio astro nem ouvia-se o canto insupportavel do fuzil, mas apparecia illuminada a fimbria do horisonte, como que a indicar-nos a alviçareira nova que havia de surgir e feria-nos os ouvidos o canto mavioso do cardeal, que em abundancia lá existia; avistavam-se os montes, tendo coroados os seus cumes de linda neve como se fôra o symbolo argenteo da paz e do progresso.
A anciedade era geral: queriamos que se désse o desenlace ha tanto esperado, ainda mesmo que fosse coroado pelo infortunio, impossivel quasi n’essa occasião.
Estavam no acampamento mais de 800 jagunços e todos eram unanimes em dizer que já não existia o Conselheiro. Estavamos, eu e os companheiros de visita ao reducto, a conversar com o illustre Major Frederico Mára, junto a egreja nova, quando ao laborar o fogo pelo resto das casas, apenas foram vistos 3 homens. Então a tropa começou a entrar pelas demais ruas, vendo-se mulheres que, ao inquirir-se lhes se queriam agua, pois já fallavam mal, respondiam-nos que preferiam a morte.
Circulou, então, com relance do raio a noticia sublime de – Victoria! Victoria!

Alvim Martins Horcades [Descrição de Uma Viagem a Canudos], estudante de medicina, integrou o corpo médico destinado a Canudos, 1897)

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“Estava marcado que Canudos seria arrasado neste dia...
O clarim deu sinal de degola e a tropa invadiu, por todos os lados, todo o arraial.
Fizeram mão rasa nos habitantes; a idade, o sexo, a cor, as condições fisiológicas dos que foram encontrados neste hediondo dia, em Canudos, não foram respeitados.
As roças foram incendiadas, as casa derruídas com os jagunços dentro.
O perfume podre dos cadáveres insepultos, que alastravam o arraial há dias, fora abafado pelo cheiro de carne assada que tresandava das fogueiras.
Mortos os maridos, a lei dos católicos não foi menos cruel do que a dos filhos de Brama para as viúvas.
Era preciso queimá-las e queimaram-nas.
O castigo era pouco e era mister um exemplo pomposo e feroz, que o tzar da Rússia e Torquemada nunca deram. Respeitaram estes, nas vítimas de sua perseguição, as que se achavam grávidas.
Em Canudos, os ventres em gestação, como caldeiras humanas, aqueceram-se, ebuliram-se e se não estouraram foi devido ao fogo já ter abrasado as paredes das comportas onde jaziam embriões e fetos que o fogo ia incinerar.
De mais se houve brados de socorro e misericórdia, a voz do incêndio e o estrondo do bombardeio abafaram!”.

(Manoel Benício [O Rei dos Jagunços], correspondente do Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, em Canudos, 1897).


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“Afinal os canhões calaram-se e, dos flancos,
Da cidade sitiada, em rispidos arrancos,
Os soldados então desceram, suspendendo
As baionetas de aço, e foram envolvendo
O adversário infeliz num circulo de lanças,
Cada vez mais estreito. Os velhos e as crianças,
Não podendo correr, morriam transpassadas
Pelas armas. E sempre em ordem e animadas,
Seguiam para adiante as forças legaes, cheias
De intrepidez, com o sangue a referver nas veias...

(...)

Logo após se viu o mais terrivel
Quadro: Velhos de olhar horrifico e severo,
Jogavam-se no fogo; homens com desespero,
Lançavam-se tambem por entre as brazas quentes,
Crispando as mãos, olhando o céo, rangendo os dentes.
Com as carnes a chiar incendiada pelo
Fogo que lhes torrava os olhos e o cabello...
As mães, sentindo na alma impetuosas flammas,
Com os filhinhos no collo, atiravam-se ás chammas...
Era um drama de dor aquelle atroz martyrio,
Como um sonho horroroso em noites de delírio!

(...)

O combate acabou, quando na immensidade
A lua appareceu, triste como a orphandade”.

(...)

“ A cidade está desfeita em brasas...
Uma, e outra depois, foram cahindo as casas...
As chammas infernaes, brutas e malfazejas,
Incendiaram já as rusticas igrejas,
Cujas torres – que horror! – outr’ora tão queridas
E tão perto do céo, não foram destruidas
Pelo incendio brutal, porque antes os soldados
As tinham derruido a tiros continuados
De canhão... Felizmente as duas altaneiras
Torres, que eram tambem horrificas trincheiras,
Não viram este quadro...”.


(Francisco Mangabeira [Tragédia Épica] estudante de medicina, integrou o corpo médico destinado a Canudos, 1897)

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“Não se pode dar um passo sem se tropeçar em uma perna, um braço, um crânio, um corpo inteiro, outro mutilado, um monte de cadáveres, aqui meio queimado, outro ali ainda fumaçando, outro adiante completamente putrefato, disforme, e ao meio de tudo o incêndio e uma atmosfera cálida e impregnada de miasmas pútridos. Por toda parte o cheiro horripilante de carne humana assada nos braseiros das casas incendiadas, 5.200 casas em labaredas!
Já não se ouvem as lamentações das mulheres e das crianças, nem as ameaças canalhas dos bandidos. A morte pela fome, pela sede, pela bala, e pelo incêndio, emudeceu a todos, substituindo as lamúrias do banditismo, pelos alegres sons dos hinos de vitória!
Canudos não existe mais!
Para a nossa infelicidade, basta a sua eterna memória, que mais parece um pesadelo.
Enfim, está acabado.
Na manhã de 5, tendo cessado o fogo às 5 e 50 minutos, a jagunçada começou a fazer entrega de mulheres e crianças, em número superior a cem, algumas feridas, mais ou menos gravemente, porém todas famintas, sedentas, esquálidas, verdadeiras múmias ambulantes, caminhando com dificuldade...
Os soldados lançavam lenha sobre as fogueiras, o Tenente Dourado lançava dinamite e em poucos minutos todo o recinto sitiado era um vasto incêndio, mal se ouvindo as agonias das vítimas do fanatismo.
E o incêndio lavrava desesperado e violento, devorando com suas labaredas, casas, homens, mulheres e crianças, nada poupando, nada respeitando. O fétido nauseabundo da carne humana em cremação, era insuportável para quem estava, como nós, a 20 metros de distância.
Canudos era uma vasta fogueira! As ruas estavam tapetadas por milhares de cadáveres!...
Uma mulher atirou-se às chamas com uma criança ao colo, outra estava morta na rua com uma criança colada aos mirrados peitos; muitos jagunços morreram queimados, dando vivas à Monarquia e ao Bom Jesus Conselheiro, recusando peremptoriamente darem vivas à República.
Nunca se viu uma campanha como esta, em que ambas as partes sustentaram ferozmente as suas aspirações opostas”.

(Fávila Nunes, correspondente do jornal Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, em Canudos, 1897)
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“No comboio de 5 chegou grande quantidade de querosene, que foi atirado às casas que restavam e aos fojos em que o inimigo se entrincheirava.
O incêndio aí tomou proporções infernais. Por entre as chamas queimavam-se madeiramento e corpos humanos; havia muita coisa de imensamente sinistro e os fanáticos, podendo fugir a essas línguas de fogo que se levantavam indômitas, atiravam-se a elas até com crianças, quando podiam render-se! Render-se...”


(Lelis Piedade, correspondente do Jornal de Notícias, de Salvador, em Canudos, 1897)

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“Em enorme buraco os nossos homens atearam grande fogueira. De dentro dolorosamente começaram a gritar: - Pelo amor de Deus, por Nossa Senhora, pela Virgem Maria, apaguem esse fogo que nos entregamos!
Corremos então à praça de Canudos. Percorrendo as ruas da cidade tive ocasião de observar o quanto se acha ela devastada, parecendo impossível que as suas casas ainda possam servir aos habitantes. Em alguns pontos vi enormes fogueiras, cujo principal combustível eram os corpos dos revoltosos, alguns dos quais ainda se acham insepultos dentro dos infectos pardieiros.
Voltando até a tarde assisti a um espetáculo inenarrável. Grupos e mais grupos de mulheres e crianças, a maior parte apresentando feridas gravíssimas, vinham de Canudos para o local em que estávamos, cobertos de imundície, nus, desfalecidos pela fome e pela sede.
À tarde, calculei em 400 pessoas quando as vi reunidas dentro do quadrado formado por praças do 1° batalhão de polícia do Pará e do 12° do Exército. No espaço misturavam-se tristemente gritos de dor, pedidos de um pouco d’água ou de um pedaço de carne”.

(Alfredo Silva, correspondente do jornal A Notícia, do Rio de Janeiro, em Canudos, 1897)