terça-feira, 22 de setembro de 2009

CANUDOS E AS NOSSAS FAVELAS


Em 1997 a Guerra de Canudos completará um século. Não por coincidência, mas por consequencia, aquele será, também, o ano do centenário da primeira favela brasileira. E o que uma coisa tem a ver com a outra?


Favela é o nome de um arbusto existente no sertão de Canudos. Apesar de seus temíveis espinhos, sua folha é um dos principais itens da ração animal, sobretudo no caso do bode. Algo comum na toponímia brasileira, o nome desta espécie vegetal, acabou batizando pequena elevação situada nas proximidades de Canudos, assim chamada “Alto da Favela”. No tempo da guerra de Canudos era ponto privilegiado para os ataques inimigos, visto que dali se tinha toda a panorâmica do arraial sagrado. Por esta razão, o Alto se tornou lugar de grande concentração, de modo que o seu nome logo ficou conhecido.


Pois bem. A guerra que durou um ano custou a vida de aproximadamente 15 mil pessoas, entre soldados e canudenses. Dos 20 mil homens que compunham o Exército Brasileiro naquela época, 12 mil foram mandados para combater em Canudos. Para o Governo que temia a restauração da Monarquia por parte dos conselheiristas, a sorte da recém-imposta República estava nas mãos dessa parcela do Exército, e seria decidida no sertão. Depois de sofrer cinco derrotas, as forças oficiais, finalmente, batem Canudos. A República estava salva.


Ao término da guerra o governo prometeu construir casas para os combatentes que, em sua grande maioria, eram do Rio de Janeiro. A promessa, contudo, não foi cumprida. Ao regressarem à capital federal, abatidos e frustrados nas suas expectativas, os combatentes ocuparam o Morro da Providência, nas proximidades do então Ministério da Guerra, e ali passaram a se abrigar em barracos de madeira. No início do século XX, com a reforma urbana de Pereira Passos, os cortiços que ficavam no centro da cidade foram demolidos, e os pobres que neles viviam acabaram se juntando aos praças que moravam lá no morro. E aí em analogia ao Alto da Favela, onde os tais praças haviam combatido, aquele aglomerado de casebres passou a se chamar favela. Desta forma, nascia a nossa primeira favela brasileira. Ou seja, das cinzas de Canudos e do descaso do Governo que, depois de realizar seu intento perverso, sequer olhou para a sorte daqueles que o defenderam. Daí para cá, as favelas se proliferaram e encheram o Brasil de ponta a ponta. Os governos que sucederam Prudente de Morais – o presidente que patrocinou a guerra – nada fizeram para resolver o problema habitacional, o qual é cada vez mais dramático.


Se os governos tivessem levado em conta o exemplo de Canudos, ao invés de massacrá-lo, a questão habitacional talvez fosse bem diferente! Em Canudos não havia falta de moradia. Todos tinham onde morar. E como explicar tal fato? A questão de fundo era a terra. Se todos tinham onde morar, é porque havia fonte de renda que lhes assegurava tal condição. Esta fonte era, indubitavelmente, a terra.


A reforma agrária que a República prometeu e não fez, foi concretizada em Canudos, libertando os sertanejos da fome e do jugo dos coronéis. Ao seu modo, Canudos foi a mais exitosa experiência de reforma agrária que o Brasil já conheceu. Tanto é verdade, que em apenas três anos, aquela comunidade construiu uma economia capaz de suprir as necessidades de aproximadamente 10 mil pessoas, e ainda poder exportar. Neste ponto, são unânimes todos os historiadores de Canudos, inclusive os opositores do Conselheiro.


Isso nos mostra que só a reforma agrária conseguirá resolver os grandes problemas do Brasil, principalmente o do déficit habitacional. A favela é uma das consequências da concentração fundiária. Basta ver que grande parte das favelas, sobretudo nas cidades de porte médio, é habitada por pessoas provenientes do campo. Ou seja, por aqueles que não encontrando espaço no meio rural, são levados a “tentar” a vida nos centros urbanos.


100 anos já se passaram; a voz do Conselheiro foi calada; as ruínas de Canudos foram submersas nas águas do Cocorobó; a secularmente prometida reforma agrária ainda não foi feita; as favelas cada vez mais ganham proporção (atualmente [1996] o número de favelados alcança a cifra dos 18 milhões); os governantes sempre de braços cruzados, “crescendo a pança” e contemplando a desgraça alheia... Quantas favelas ainda teremos que inaugurar até que a terra seja distribuída aos seus verdadeiros donos?


Talvez o povo brasileiro precise cantar como cantou Geraldo Vandré: “Quem sabe faz a hora não espera acontecer”. Há 100 anos os matutos de Canudos já tinham essa consciência.


Ou queremos mais favelas?



José Gonçalves do Nascimento
(Membro da Academia de Ciências, Artes e Letras de Senhor do Bonfim)


(Nota: Artigo publicado originalmente no Jornal A TARDE, Salvador/Bahia, em 9 de dezembro de 1996. O texto é também parte integrante do livro "Recortes de Canudos" de autoria de Raimundo Gama, Editora EDA-Bahia e Universidade Tiradentes - UNIT, Salvador, Bahia, 1997).

CANUDOS E A QUESTÃO DA TERRA



Afonso Arinos, escrevendo sobre o episódio de Canudos, ainda no calor da hora, sustentava que aquela guerra servia, ao menos, para uma coisa: denunciar, perante as instâncias do poder, “o desprezo ou o olvido a que fora relegada” a região sertaneja. Tinha razão, o autor de Os Jagunços. Porém, Canudos pode denunciar muito mais. Ele pôs em evidência a própria causa do atraso e da miséria do sertão.


Canudos, ao lado de tantos outros movimentos camponeses, foi consequência de um problema que teve origem com a colonização: o monopólio da terra. Um legado que chega aos nossos dias projetando o Brasil no rol mundial dos países com maior concentração de terras.


É óbvio que o Brasil de hoje é diferente do Brasil de outros tempos. Mas, sem dúvida, no que toca ao sistema fundiário, quase nada mudou. O latifúndio resistiu a todas as grandes transformações porque passou o país durante séculos, e de todas elas saiu incólume. Neste sentido, o Brasil é um país extremamente atrasado, conservador e injusto.


Como é possível pensar em justiça social, com um sistema fundiário que exclui o cidadão, condenando-o á miséria, quando não à própria morte?! É inconcebível que 12 milhões de camponeses (em 1997), não tenham de onde tirar o pão de cada dia, enquanto 166 milhões de hectares de terra fértil (o que corresponde três vezes à França), “repousam em paz” sob a custódia do arame farpado. A concentração da terra não é só responsável por grande parte dos problemas do Brasil. Ela constitui, acima de tudo, um dado de injustiça social.


No momento em que se comemora o centenário do massacre do Belo Monte (1997), a situação do campo não é muito diferente daquela no âmbito da qual teve lugar o movimento liderado por Antonio Conselheiro: monopólio, exploração, exclusão, conflito... Canudos, fundamentalmente, foi uma reação do sertanejo (poderia ter sido do sulista), a tal situação. Ou seja, foi um movimento em função da terra; ao seu modo, uma tentativa de reforma agrária que, aliás, prosperou.


Localizada em uma das áreas mais secas do sertão baiano, porém apoiada nas margens frescas do rio Vaza-Barris, a comunidade canudense, com o uso comum da terra ocupada, construiu, em apenas três anos, uma economia capaz de sustentar uma população estimada em 10 mil pessoas. O jornalista Manoel Benício, que ali esteve durante a guerra, informou que havia em Canudos “plantações de diversos legumes, milho, feijão, favas, batatas, melancias, melões, jeremuns, cana-de-açúcar (...) Havia, ainda, “sítios, pomares, fazendolas de criação de bode, animais vacuns e cavalares...” Um outro testemunho que comprova o sucesso de tal experiência, nos vem do Dr. Nina Rodrigues, o mesmo que examinou o crânio do beato: “Em curto prazo, Antonio Conselheiro havia transformado Canudos de estância deserta de abandonada em uma vila florescente e rica”.


Canudos, então, representava uma ameaça à ordem do sistema fundiário, o qual resiste; e, com o apoio do Governo sai vitorioso.


Cem anos depois, continuam as ocupações; os pequenos “canudos” aqui e acolá. Os camponeses não desistem de lutar pelo espaço que na história da vida brasileira parece nunca haver lhes pertencido. Por sua parte, os senhores da terra, agora vestindo a camisa do neoliberalismo, continuam a reagir. O método é sempre o mesmo. Que o diga a memória dos mortos de Corumbiara, Eldorado dos Carajás, e tantos outros “eldorados” da morte espalhados por este país “abençoado por Deus”.


A luta pela terra continua; e, enquanto não desmoronar o último latifúndio, ela não cessará. É o sistema que assim o quer.


José Gonçalves do Nascimento

(Membro da Academia de Artes, Letras e Ciências de Senhor do Bonfim)


(Nota: artigo publicado, originalmente, no jornal A Tarde, de Salvador, edição do dia 3 de abril de 1997 e no jornal GAC de Monte Santo, edição de agosto de 1997)

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

O GALO DE CANTAGALO


Cantou o galo de Cantagalo
e o Brasil encantado
logo desencantou
com o cantar encantador
do Galo de Cantagalo.

Um outro Brasil nasceu
da história que escreveu
da luta que descreveu
da terra que percorreu
do homem que enalteceu
o galo de Cantagalo.

Encantado cantador
cantou sem desencanto
cada canto do Brasil,
cada canto do sertão:
sertão seco,
sertão verde,
ser-tão gente,
ser-tão bicho,
ser-tão fogo,
ser-tão água,
ser-tão Brasil...

Cantador de Cantagalo
canta galo encantador!
canta a caatinga,
canta a floresta
canta o vaqueiro e o aboiador.

Rasga cantador
rasga os desertos do Brasil:
desertos de homens,
desertos de terra,
desertos de paz,
desertos de pão
desertos de luz.

Profeta solitário,
que pregaste no vazio
e abriste aceiros,
e tocaste boiadas,
e colheste poema,
e com lápis e pontes
escreveste o futuro...
Ó galo de Cantagalo.

E assim ajuntaram-se os brasis
E assim descobriu-se o Brasil,
do canto do galo de Cantagalo.


José Gonçalves do Nascimento
Senhor do Bonfim - Bahia