Favela é o nome de um arbusto existente no sertão de Canudos. Apesar de seus temíveis espinhos, sua folha é um dos principais itens da ração animal, sobretudo no caso do bode. Algo comum na toponímia brasileira, o nome desta espécie vegetal, acabou batizando pequena elevação situada nas proximidades de Canudos, assim chamada “Alto da Favela”. No tempo da guerra de Canudos era ponto privilegiado para os ataques inimigos, visto que dali se tinha toda a panorâmica do arraial sagrado. Por esta razão, o Alto se tornou lugar de grande concentração, de modo que o seu nome logo ficou conhecido.
Pois bem. A guerra que durou um ano custou a vida de aproximadamente 15 mil pessoas, entre soldados e canudenses. Dos 20 mil homens que compunham o Exército Brasileiro naquela época, 12 mil foram mandados para combater em Canudos. Para o Governo que temia a restauração da Monarquia por parte dos conselheiristas, a sorte da recém-imposta República estava nas mãos dessa parcela do Exército, e seria decidida no sertão. Depois de sofrer cinco derrotas, as forças oficiais, finalmente, batem Canudos. A República estava salva.
Ao término da guerra o governo prometeu construir casas para os combatentes que, em sua grande maioria, eram do Rio de Janeiro. A promessa, contudo, não foi cumprida. Ao regressarem à capital federal, abatidos e frustrados nas suas expectativas, os combatentes ocuparam o Morro da Providência, nas proximidades do então Ministério da Guerra, e ali passaram a se abrigar em barracos de madeira. No início do século XX, com a reforma urbana de Pereira Passos, os cortiços que ficavam no centro da cidade foram demolidos, e os pobres que neles viviam acabaram se juntando aos praças que moravam lá no morro. E aí em analogia ao Alto da Favela, onde os tais praças haviam combatido, aquele aglomerado de casebres passou a se chamar favela. Desta forma, nascia a nossa primeira favela brasileira. Ou seja, das cinzas de Canudos e do descaso do Governo que, depois de realizar seu intento perverso, sequer olhou para a sorte daqueles que o defenderam. Daí para cá, as favelas se proliferaram e encheram o Brasil de ponta a ponta. Os governos que sucederam Prudente de Morais – o presidente que patrocinou a guerra – nada fizeram para resolver o problema habitacional, o qual é cada vez mais dramático.
Se os governos tivessem levado em conta o exemplo de Canudos, ao invés de massacrá-lo, a questão habitacional talvez fosse bem diferente! Em Canudos não havia falta de moradia. Todos tinham onde morar. E como explicar tal fato? A questão de fundo era a terra. Se todos tinham onde morar, é porque havia fonte de renda que lhes assegurava tal condição. Esta fonte era, indubitavelmente, a terra.
A reforma agrária que a República prometeu e não fez, foi concretizada em Canudos, libertando os sertanejos da fome e do jugo dos coronéis. Ao seu modo, Canudos foi a mais exitosa experiência de reforma agrária que o Brasil já conheceu. Tanto é verdade, que em apenas três anos, aquela comunidade construiu uma economia capaz de suprir as necessidades de aproximadamente 10 mil pessoas, e ainda poder exportar. Neste ponto, são unânimes todos os historiadores de Canudos, inclusive os opositores do Conselheiro.
Isso nos mostra que só a reforma agrária conseguirá resolver os grandes problemas do Brasil, principalmente o do déficit habitacional. A favela é uma das consequências da concentração fundiária. Basta ver que grande parte das favelas, sobretudo nas cidades de porte médio, é habitada por pessoas provenientes do campo. Ou seja, por aqueles que não encontrando espaço no meio rural, são levados a “tentar” a vida nos centros urbanos.
100 anos já se passaram; a voz do Conselheiro foi calada; as ruínas de Canudos foram submersas nas águas do Cocorobó; a secularmente prometida reforma agrária ainda não foi feita; as favelas cada vez mais ganham proporção (atualmente [1996] o número de favelados alcança a cifra dos 18 milhões); os governantes sempre de braços cruzados, “crescendo a pança” e contemplando a desgraça alheia... Quantas favelas ainda teremos que inaugurar até que a terra seja distribuída aos seus verdadeiros donos?
Talvez o povo brasileiro precise cantar como cantou Geraldo Vandré: “Quem sabe faz a hora não espera acontecer”. Há 100 anos os matutos de Canudos já tinham essa consciência.
Ou queremos mais favelas?
José Gonçalves do Nascimento
(Membro da Academia de Ciências, Artes e Letras de Senhor do Bonfim)
(Nota: Artigo publicado originalmente no Jornal A TARDE, Salvador/Bahia, em 9 de dezembro de 1996. O texto é também parte integrante do livro "Recortes de Canudos" de autoria de Raimundo Gama, Editora EDA-Bahia e Universidade Tiradentes - UNIT, Salvador, Bahia, 1997).