segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

DISCURSO DO PRESIDENTE DA ACLASB POR OCASIÃO DA SESSÃO SOLENE EM COMEMORAÇÃO AO DIA DA CULTURA BONFINENSE - DEZEMBRO DE 2010



Senhores e senhoras,

A todos vocês as nossas boas vindas e a nossa acolhida calorosa. Obrigado imensamente por suas honrosas presenças!

É com redobrada satisfação que a Academia de Letras e Artes de Senhor do Bonfim (ACLASB) se reúne mais uma vez para comemorar a semana da cultura bonfinense, cujo ápice é o dia 5 de dezembro, data em que se evoca a passagem por esta terra do então senador baiano Rui Barbosa, expressão suprema da inteligência brasileira.

Como parte desta solenidade, teremos, dentro em pouco, o ingresso na Academia de quatro intelectuais bonfinenses. São eles: o fotógrafo e cineasta Nivaldo Oliveira Souza; o poeta Edivan Ferreira Cajuy, o colunista Jacson Roberto Santana, e o poeta e compositor José Antônio Ferreira da Silva (Durá), este natural da comunidade centenária do Cazumba I e representante legítimo da agricultura familiar.

Nossos cumprimentos cordiais aos neo-acadêmicos, com a certeza de que os seus nomes haverão de engrandecer e dignificar esta Casa de Cultura.

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Reza a sabedoria oriental que, do mesmo modo como a função do arco é impulsionar a flecha em direção ao alvo, o papel da cultura é conduzir o ser humano rumo à felicidade, à auto-estima, à realização. Desta forma, quanto mais intensa for a nossa interação com o universo cultural, maiores serão os resultados em termos de bem-estar e qualidade de vida. Deste aviso é também o poeta e crítico anglo-americano Thomas Stearns Eliot, quando afirma que a cultura “é aquilo que torna a vida digna de ser vivida”.

Do verbo latino Colere cultura significa, originalmente, cultivo, cuidado. Nos primórdios era o cultivo e o cuidado para com a terra, daí agricultura; para com as crianças, donde puericultura; ou para com a divindade, de onde advém a palavra culto.

Com o passar do tempo, o termo foi ganhando novos significados. No Iluminismo, por exemplo, ele se torna sinônimo de civilização. Desta maneira, a cultura passa a ser vista como conjunto de práticas, incluindo a arte, a ciência, a filosofia, as técnicas, etc, que permitem avaliar o grau de progresso e evolução dos povos e sociedades.

Mais recentemente, com o apogeu da filosofia alemã, ela passa a ser defendida e elaborada como a diferença entre natureza e história. Deste ponto de vista, a cultura é o rompimento da adesão à ordem natural – adesão própria aos animais – e a inauguração do mundo humano propriamente dito. A ordem natural é a da causalidade necessária, em vista do equilíbrio do todo. Já a ordem humana é a ordem simbólica, ou seja, a da capacidade do ser humano de se relacionar por meio da linguagem e do trabalho.

Com isso a palavra ganha uma abrangência maior e a cultura passa a ser entendida, nas palavras de Marilena Chauí, “como produção e criação da linguagem, da religião, da sexualidade, dos instrumentos e da forma do trabalho, dos modos da habitação, do vestuário e da culinária, das expressões de lazer, da música, da dança, dos sistemas de relações sociais (...), da noção de vida e morte”. É “o campo – continua a filósofa paulista – em que os sujeitos humanos elaboram símbolos e signos, instituem as práticas e os valores, definem para si próprios o possível e o impossível, a direção da linha do tempo (passado, presente e futuro), as diferenças no interior do espaço (a percepção do próximo e do distante, do grande e do pequeno, do visível e do invisível), os valores – o verdadeiro e o falso, o belo e o feio, o justo e o injusto – que instauram a ideia de lei e, portanto, do permitido e do proibido, determinando o sentido da vida e da morte e das relações entre o sagrado e o profano”.

Henrique Dussel, filósofo argentino e um dos papas da chamada Filosofia da Libertação, defende a cultura como “conjunto orgânico de comportamentos pré-determinados, cujo conteúdo teleológico se constitui a partir dos valores e símbolos dos grupos, ou em estilos de vida que se manifestam em obras de cultura e que transformam o ambiente físico animal em um mundo humano, um mundo cultural”.

A cultura, de fato, representa uma das dimensões essenciais da existência humana e, como tal, encontra-se na base da nossa identidade individual e coletiva. Sociedade alguma jamais conseguirá se consolidar como tal sem um lastro cultural que possa garantir a sua auto-identificação. Deste modo, nenhum povo, nenhuma tribo, nenhum grupo humano... pode ser desprovido de cultura.

Contudo, longe de se constituir um bloco monolítico, estático, a cultura se apresenta em cada realidade de forma peculiar e diferenciada. Por isso, é preferível falar aqui de cultura no plural. É nesta perspectiva que falamos de cultura popular, enquanto conjunto de manifestações simbólicas produzidas e consumidas por um mesmo grupo social.

Com admirável sabedoria, pontifica Frei Hermínio de Oliveira, em estudo voltado para a cultura popular no nordeste brasileiro: “Arraigada no dia-a-dia da vida do povo, a cultura popular não pode ser imaginada a partir de uma teoria “a priori”, mas deve ser descoberta através da observação das manifestações populares. Seu traçado fundamental é, portanto, o seu enraizamento nos costumes de cada um. A linguagem popular nos dá uma idéia aproximada da cultura de um povo, de seus valores e da sua maneira de ver a vida”.

A cultura dita canônica ou erudita é igual em qualquer parte do mundo, pelo menos nos seus traços fundamentais. Ao passo que a cultura popular se assenta na singularidade. Ela jamais se repete. Cada grupo humano possui a sua. E é através dela que estes mesmos grupos se caracterizam, se identificam, se distinguem, se comunicam, se põem e se impõem, enquanto sujeitos sociais e políticos. É justamente aí, que reside o valor, a grandeza e a força da cultura dita popular.

Foi com essa perspectiva que o romantismo germânico foi buscar na cultura popular a base para a construção da tradição cultural alemã. Por demais conhecido é o esforço de pensadores como Herder e os irmãos Grimm, no tocante ao resgate e à preservação das tradições populares, principalmente aquelas relacionadas ao meio rural. São frutos desse trabalho, por exemplo, clássicos da literatura infantil como Chapeuzinho Vermelho, Cinderela, Branca de Neve, entre outros. Nenhuma outra tradição nacional foi formada com tanta ênfase no tema da tradição popular como a da nação alemã.

Mais ou menos próximo a essa época obras de relevo da literatura universal foram construídas a partir de elementos colhidos entre as tradições populares. O próprio Shakespeare teria bebido nessa fonte. Obras como Hamlet e Macbeth, entre outras, foram inspiradas na cultura popular do medievo inglês. O mesmo poder-se-ia dizer de um Fausto goethiano no caso da Alemanha, ou de um Dom Quixote no mundo espanhol, este último, por seu turno, fonte inspiradora de trabalhos monumentais, como o Auto da Compadecida, de Ariano Sussuana, para citar um exemplo apenas.

Na transição do século XIX para o século XX, o engenheiro e escritor Euclides da Cunha asseverava, em sua obra magna, Os Sertões, ser o interior do país e não o centro civilizado, o cerne da nacionalidade brasileira. Foi com base nesse princípio que ele penetrou o chamado “Brasil profundo”, despertando a atenção das elites políticas, econômicas e culturais para os inumeráveis problemas que faziam deste, um país dividido entre o progresso do litoral e o atraso do interior. Na mesma época e na mesma esteira de pensamento, estão escritores como Melo Morais Filho, Afonso Arinos de Melo Franco, Sílvio Romero e Araripe Júnior. Todos comprometidos com uma produção intelectual voltada para a valorização das coisas do universo interiorano. Mais tarde, será Guimarães Rosa a penetrar os sertões das Minas Gerais em busca do substrato cultural das populações campesinas – a matéria prima que deu alma, vida e forma às suas criações literárias. Em época mais recente, Luis da Câmara Cascudo viria a consolidar, de uma vez por todas, os estudos acerca do folclore, das tradições, e das culturas populares brasileiras, deixando, nesta área, um dos maiores registros de que se tem conhecimento.

A cultura popular, todavia, vem sendo paulatinamente substituída pela chamada cultura de massa que diuturnamente é veiculada através dos grandes veículos midiáticos, principalmente a televisão. Voltados apenas para os interesses do grande capital, tais veículos, além de não demonstrarem o menor apreço para com as formas de cultura oriundas do povo, vêm trabalhando sistematicamente no sentido de esvaziá-las ou mesmo suplantá-las. O objetivo é muito claro: privar o povo do seu cabedal cultural, para depois cooptá-lo à propaganda mercantilista.

Na região Norte/Nordeste do Estado da Bahia o quadro não é diferente. Conforme observa o professor José Plínio de Oliveira, da Universidade do Estado da Bahia - UNEB, “Muitas das manifestações culturais de domínio popular (...) acham-se agora ameaçadas de extinção. Há um vácuo que está sendo alargado pela circulação intensa da indústria cultural em detrimento das culturas de raízes populares nestes espaços sertanejos”. O que vem provocando, segundo a observação do acadêmico, uma verdadeira “desertificação nostálgica”.

Senhor do Bonfim, infelizmente, não está longe dessa problemática. Se algumas de suas manifestações têm conseguido sobreviver é porque para isso tem se despendido muito esforço e muita dedicação. Exemplo disso são o Samba de Lata de Tijuaçu, e o Terno de Reis das localidades de Umburana, Baraúna, Passagem Velha e Cazumba I. Isso é uma comprovação de que sem esforço, sem investimento e sem vontade política a cultura popular, estará fadada ao fracasso.

Urge, portanto, que se implemente uma política voltada para a preservação e revitalização das manifestações ligadas à cultura popular. Neste sentido, propomos o que segue: 1) levantamento de todas as formas de cultura existentes no município; 2) elaboração de um plano municipal de cultura que contemple todas as modalidades de manifestação cultural; 3) acompanhamento e monitoramento de todas as manifestações culturais através de capacitações, seminários e oficinas; 4) divulgação das manifestações culturais através de amostras, folders, e meios de comunicação diversos; 5) além da inserção do tema no currículo escolar, como já ocorre em muitos municípios brasileiros.

Desta forma, estaremos dando um grande passo na construção da plena cidadania, uma vez que cidadania passa também pelo respeito que é devotado à memória, à tradição, à cultura... E não esqueçamos nunca de que o nível de civilidade de um povo está sempre vinculado à forma como este mesmo povo lida com seu patrimônio cultural.

Dezembro de 2010

José Gonçalves do Nascimento