Afonso Arinos, escrevendo sobre o episódio de Canudos, ainda no calor da hora, sustentava que aquela guerra servia, ao menos, para uma coisa: denunciar, perante as instâncias do poder, “o desprezo ou o olvido a que fora relegada” a região sertaneja. Tinha razão, o autor de Os Jagunços. Porém, Canudos pode denunciar muito mais. Ele pôs em evidência a própria causa do atraso e da miséria do sertão.
Canudos, ao lado de tantos outros movimentos camponeses, foi consequência de um problema que teve origem com a colonização: o monopólio da terra. Um legado que chega aos nossos dias projetando o Brasil no rol mundial dos países com maior concentração de terras.
É óbvio que o Brasil de hoje é diferente do Brasil de outros tempos. Mas, sem dúvida, no que toca ao sistema fundiário, quase nada mudou. O latifúndio resistiu a todas as grandes transformações porque passou o país durante séculos, e de todas elas saiu incólume. Neste sentido, o Brasil é um país extremamente atrasado, conservador e injusto.
Como é possível pensar em justiça social, com um sistema fundiário que exclui o cidadão, condenando-o á miséria, quando não à própria morte?! É inconcebível que 12 milhões de camponeses (em 1997), não tenham de onde tirar o pão de cada dia, enquanto 166 milhões de hectares de terra fértil (o que corresponde três vezes à França), “repousam em paz” sob a custódia do arame farpado. A concentração da terra não é só responsável por grande parte dos problemas do Brasil. Ela constitui, acima de tudo, um dado de injustiça social.
No momento em que se comemora o centenário do massacre do Belo Monte (1997), a situação do campo não é muito diferente daquela no âmbito da qual teve lugar o movimento liderado por Antonio Conselheiro: monopólio, exploração, exclusão, conflito... Canudos, fundamentalmente, foi uma reação do sertanejo (poderia ter sido do sulista), a tal situação. Ou seja, foi um movimento em função da terra; ao seu modo, uma tentativa de reforma agrária que, aliás, prosperou.
Localizada em uma das áreas mais secas do sertão baiano, porém apoiada nas margens frescas do rio Vaza-Barris, a comunidade canudense, com o uso comum da terra ocupada, construiu, em apenas três anos, uma economia capaz de sustentar uma população estimada em 10 mil pessoas. O jornalista Manoel Benício, que ali esteve durante a guerra, informou que havia em Canudos “plantações de diversos legumes, milho, feijão, favas, batatas, melancias, melões, jeremuns, cana-de-açúcar (...) Havia, ainda, “sítios, pomares, fazendolas de criação de bode, animais vacuns e cavalares...” Um outro testemunho que comprova o sucesso de tal experiência, nos vem do Dr. Nina Rodrigues, o mesmo que examinou o crânio do beato: “Em curto prazo, Antonio Conselheiro havia transformado Canudos de estância deserta de abandonada em uma vila florescente e rica”.
Canudos, então, representava uma ameaça à ordem do sistema fundiário, o qual resiste; e, com o apoio do Governo sai vitorioso.
Cem anos depois, continuam as ocupações; os pequenos “canudos” aqui e acolá. Os camponeses não desistem de lutar pelo espaço que na história da vida brasileira parece nunca haver lhes pertencido. Por sua parte, os senhores da terra, agora vestindo a camisa do neoliberalismo, continuam a reagir. O método é sempre o mesmo. Que o diga a memória dos mortos de Corumbiara, Eldorado dos Carajás, e tantos outros “eldorados” da morte espalhados por este país “abençoado por Deus”.
A luta pela terra continua; e, enquanto não desmoronar o último latifúndio, ela não cessará. É o sistema que assim o quer.
José Gonçalves do Nascimento
(Membro da Academia de Artes, Letras e Ciências de Senhor do Bonfim)
(Nota: artigo publicado, originalmente, no jornal A Tarde, de Salvador, edição do dia 3 de abril de 1997 e no jornal GAC de Monte Santo, edição de agosto de 1997)
Nenhum comentário:
Postar um comentário