NO COMEÇO
Tudo começou com um casal de viúvos. Carlos Cardoso de Barros e Thereza Maria de Jesus chegaram à fazenda Urubu, em terras da então Villa Nova da Rainha, e ali fixaram moradia. Algum tempo depois os dois se casaram e tiveram filhos. Eles vieram de Porteiras, região do Cariri, próximo a Juazeiro do Norte, no Ceará. Saíram de lá, provavelmente, tangidos pela terrível seca que assolou aquele estado no período de 1877 a 1879.
A SECA DE 1877-79
Tida como a pior estiagem da história do Nordeste, a seca de 77-79, dizimou quase metade da população cearense. Dos 800 mil habitantes existentes na época, 300 mil morreram de fome e sede, ou emigraram para outros estados do Brasil, inclusive a Bahia. Contrariando a política oficial, que garantia a cada brasileiro o direito de receber socorro em situação de calamidade, o Império atuou em duas frentes distintas: uma foi a utilização dos flagelados em obras públicas e particulares, e a outra, a dispersão desses mesmos flagelados, enxotando-os para outras regiões do Brasil.
A PRESENÇA DOS CEARENSES EM SENHOR DO BONFIM
Entre as levas de cearenses transmigrados para a Bahia e aportados em Villa Nova da Rainha, estão os irmãos Vilanova (Antônio e Honório Francisco Assunção), personagens célebres da história de Canudos e Antonio Conselhiro. Estabelecidos na comunidade canudense, após algum tempo residindo na então futura Terra do Bom Começo, os irmãos Vilanova se tornariam detentores do maior estabelecimento comercial do arraial de Canudos. Isso lhes conferiu prestígio e os fez participar do grupo das pessoas mais influentes do séquito conselheirista. Antes de findar a guerra e com o consentimento de Antônio Conselheiro, os dois voltariam para o Ceará, levando família e fortuna.
OS PIONEIROS
José Carlos Cardoso, carpinteiro de ofício, filho de Carlos Cardoso de Barros e Thereza Maria de Jesus, casou-se em 1910, com Maria Virgínia de Jesus, natural da Missão do Sahy, indo morar na fazenda Serraria e tornando-se desta o pioneiro. O nome, segundo a gente do lugar estaria relacionado à profissão do seu primeiro morador. Com o passar do tempo a antiga fazenda Serraria desdobrou-se em três: Serraria do Carlos, Serraria do Bento da Passagem Velha e Serraria de Joaquim Timóteo. Anos mais tarde as três voltariam a se fundir, resultando no que é hoje a comunidade do Cazumba.
O nome Cazumba, de fato, surgiu muito tempo depois. Para dona Rosa Maria Carlos, de 90 anos, filha dos primeiros desbravadores do lugar, o topônimo se deveu ao fato das pessoas associarem a fazenda Serraria a uma outra fazenda, mais adiante, denominada Cazumba, hoje batizada por Sanharó. Já para Nelson Neves, de 70 anos, sobrinho do carpinteiro, o nome Cazumba tem a ver com uma carcaça de animal, provavelmente de gado vacum, que ficava na beira da estrada, próximo à fazenda Serraria.
O SIGNIFICADO DA PALAVRA CAZUMBA...
Para o antropólogo Raul Geovanni da Mota Lody, responsável por vários estudos na área das religiões afro-brasileiras, o termo cazumba ou cazumbá descende do grupo etimológico Cazumbi, Zumbi, Nzumbi, originário do Kibundo Nzumbi, macrogrupo etnolingüístico Bantu. Trata-se de uma entidade espiritual “que se supõe estar pelo mundo participando com os vivos”. Algo como um espírito animal, “remetendo aos rituais dos caçadores na floresta”. Ou “uma fusão dos espíritos dos homens e dos animais”. “É ser eminentemente fantástico, misterioso...”. (LODY, Raul. Dicionário de Arte Sacra e Técnicas Afro-brasileiras, Pallas Editora, Rio de Janeiro, 2003, p. 228).
Cazumba seria uma figura entre homem e animal, sem ser nem um, nem outro. Ou entre macho e fêmea, sem assumir nenhuma das duas condições. O sentido da palavra estaria relacionado também a duende ou fantasma que, segundo a crença popular afro-brasileira vagueia pela noite, fazendo encantamento e aprontando travessuras.
O estudioso Nei Braz Lopes, autor de trabalhos voltados para as questões da África, indica ser o “cazumba uma máscara de procedência africana encontrada em alguns autos populares” do Brasil. (LOPES, Nei. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, Selo Negro, São Paulo, 2004, p. 180).
Com efeito, é no bumba-meu-boi do Maranhão que vamos encontrar essa figura extraordinária. A pesquisadora Juliana Bittencourt Manhães, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, que acompanhou de perto esse ritual, tendo, inclusive, convivido com pessoas que dele fazem parte, nos traz informações valiosíssimas quanto à presença do cazumba naquele segmento da cultura popular maranhense. “O cazumba – diz ela - é um personagem dos bois da região da baixada, território com campos baixos, que alagam na estação das chuvas (...). São bois com um ritmo cadenciado, a presença do badalo, pandeirões menores ou caixas, enormes chapéus bordados com penas de ema e a presença do cazumba. É uma figura mascarada, sua indumentária é chamada de bata ou farda, um vestidão cheio de bordados e coloridos com um cofo de palha usado na cintura, trazendo uma figura grotesca, com uma bunda enorme que balança. Na mão segura um badalo, tipo sino de boi, avisando que o bando de cazumbas está chegando”.(http://www.portalabrace.org/vcongresso/texto/estudosperformance >Acesso em: 04-08-2010).
... E COMO ISSO CHEGOU ATÉ AQUI?
O que teria a ver o nosso Cazumba com o personagem afro-brasileiro dos folguedos do Maranhão? Haveria alguma aproximação entre o boi do folclore maranhense e o boi da carcaça que batizou a belíssima comunidade do interior bonfinense? De que maneira teria se dado uma tal aproximação? Talvez, uma das respostas a este questionamento esteja no fato da então fazenda Serraria ser cortada por estrada tropeira, por onde transitavam pessoas de grande parte do Nordeste. De qualquer forma a questão continua em aberto, a espera de estudo mais aprofundado.
José Gonçalves do Nascimento
(Presidente da Academia de Letras e Artes de Senhor do Bonfim (ACLASB).
e-mail: jgoncalvesnascimento@hotmail.com
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