terça-feira, 1 de dezembro de 2009

ANTONIO CONSELHEIRO, MOREIRA CÉSAR E EUCLIDES DA CUNHA (o que pode haver em comum entre eles?)


A leitura acerca do episódio de Canudos tem nos levado, insistentemente, a fazer a seguinte pergunta: o que poderia haver em comum entre Antônio Conselheiro, Moreira César e Euclides da Cunha? Visto de relance, quase nada. No primeiro caso, temos um pregador matuto, que saído do seio da caatinga do Nordeste, pôs-se a anunciar um mundo solidário e livre do jugo dos senhores da terra e do voto; no segundo, um coronel do Exército brasileiro identificado com as causas republicanas e mandado ao sertão com o intuito de “dar cobro” ao Belo Monte dos sertanejos; no terceiro, um ex-integrante do mesmo Exército, desta feita, investido da função de jornalista e tendo como tarefa cobrir, a serviço dos militares, a guerra que baniu a cidade santa de Canudos. A princípio, três figuras completamente distintas. Contudo, a maneira firme e decisiva com que cada um deles empunhou a bandeira das suas convicções, é algo que, de certa forma, termina identificando os três e, consequentemente, encurtando a longa distância entre eles existente. É disto que trataremos.


1- Antônio Conselheiro


Antônio Vicente Mendes Maciel, ou Antônio Conselheiro, como ficou conhecido por estas paragens, nasceu aos 13 de março de 1830, na Vila do Campo Maior de Quixeramobim, na então província do Ceará. Aos cinco anos de idade torna-se órfão de mãe, ficando sob os (des) cuidados de tresloucada madrasta. Mais tarde, ao perder o pai, vê-se obrigado a cuidar de três irmãs de menor idade. Casa-se com uma prima que, anos depois, o abandona fugindo com um furriel da polícia do Ceará. Assume os negócios do genitor, mas não obtendo sucesso, deles se desfaz vindo a desempenhar outros ofícios. Trabalha como caixeiro viajante, construtor civil, rábula e professor. Em seguida, investiu-se da missão de beato e passou a peregrinar pelos sertões do Nordeste fazendo sermões e aconselhando o povo simples. Nesse novo itinerário, além de propagador dos valores da religião, se dedica também à construção de igrejas, cemitérios e aguadas. Torna-se, conforme escreveu Euclides da Cunha, “(...) o emissário das alturas tendo uma função exclusiva: apontar aos pecadores o caminho dos céus. Não foi além. Era um servo jungido à tarefa dura; e lá se foi, caminho dos sertões bravios, largo tempo, arrastando a carcaça claudicante, impressionando pela firmeza nunca abalada e seguindo para um objetivo fixo com finalidade irresistível (Cunha, 1975, p. 122).

Em 1874, conforme atesta um periódico (O Rabudo) da cidade de Estância, aparece em Sergipe, vindo, em seguida, a migrar para a Bahia. Após percorrer grande parte do Nordeste baiano, em 1893 se fixa em Canudos onde instala uma comunidade que ele mesmo batiza de Belo Monte. Pautada na oração e na vida comunitária, a comuna sertaneja, em apenas quatro anos de existência reúne uma população cujas estimativas oscilam entre 10 e 30 mil almas. Em 1896, o Estado, com o apoio da Igreja e dos fazendeiros, resolve pôr fim àquela experiência dando início a uma guerra que durou um ano (1896-1897) e custou a vida de milhares de pessoas entre soldados e sertanejos.

Firme nas suas convicções, Antônio Conselheiro, em momento algum se deixou intimidar. Mesmo nos momentos de perseguição e humilhação, soube se portar com equilíbrio e serenidade. Foi assim, desde a sua prisão em Itapicuru quando o levaram até Fortaleza sob acusação de ter assassinado a mãe e a mulher, até o curso da guerra que lhe custou à própria vida.

Foi rigoroso no combate à arrecadação de impostos, à escravidão, à República e ao casamento civil. Com a mesma veemência, defendeu a fé católica e os valores morais dos sertanejos, ensinando a prática do perdão, da obediência, do respeito, da oração e do amor ao próximo. Repeliu o furto, a violência, o adultério, a prática da prostituição e toda sorte de vícios. É o que atestam as suas prédicas – hoje conhecidas do grande público graças ao esforço do professor Ataliba Nogueira que as publicou nos anos setenta.

Desprendido dos bens materiais e dispensando qualquer comodidade, Antônio Conselheiro alimentava-se, frequentemente, das esmolas que lhe ofereciam. Trajava túnica de algodão e dormia em cima de uma esteira. Nas suas peregrinações pelas terras calcinadas do Nordeste, andava quase sempre a pé. O seu dia-a-dia era voltado para o trabalho, o aconselhamento e a oração.

Indignado com o sofrimento do povo nordestino, resolveu fundar uma comunidade onde as pessoas pudessem desfrutar de vida digna, respeito e solidariedade. Seria o primeiro passo para a libertação total, quando todos viveriam livres de qualquer jugo ou dominação. Esse sonho, ele levou até as últimas conseqüências, resultando na guerra que maculou a história do Brasil. A guerra de Canudos.


2 - Moreira César


Antônio Moreira César nasceu no dia 27 de julho de 1850, na cidade paulista de Pindamonhangaba. Quanto à sua filiação, sabe-se, apenas, que era filho de certo vigário de nome Antônio Moreira César de Almeida. Pelo menos é o que defende o seu sobrinho-neto Ayrton César Marcondes.

Em 1869, ingressa no Exército como voluntário e, graças a sua dedicação, ascende rapidamente na carreira militar. Chega ao coronelato, por merecimento, aos 42 anos de idade. Em 1892, assume o comando do respeitadíssimo 7º Batalhão de Infantaria e no ano seguinte combate na Revolta da Armada – levante comandado por um grupo de altos oficiais da Marinha Brasileira que se opunha à permanência de Floriano Peixoto na presidência da República. Em 1894, é nomeado governador interventor do Estado de Santa Catarina, onde reprime a Revolução Federalista – movimento anti-republicano que atuava na região sul do país. Com a derrota do major Febrônio de Brito nas proximidades do burgo sagrado de Antônio Conselheiro, é nomeado comandante da 3ª expedição contra Canudos, para onde se dirige conduzindo um efetivo de 1.600 homens. Morre nos arredores de Belo Monte no dia 4 de março de 1897, vitimado por bala inimiga.

Profissional meticuloso e detalhista, Moreira César se destacou, não apenas como “homem da tropa de linha”, mas igualmente como estudioso da legislação militar e de seus regulamentos. Chegou a integrar comissão que elaborou os anteprojetos dos Códigos Criminal e de Processo Disciplinar, integrantes do Código de Justiça Militar de agosto de 1890, tendo sido, por isto, amplamente elogiado.

Henrique Duque Estrada de Macedo Soares, militar que esteve no front como tenente de artilharia e que depois escreveu valioso trabalho sobre o episódio, afirma que “para ele, [Moreira César] não existiam obstáculos materiais (...) Além das suas convicções, nada considerava: o que ordenasse cumpri-lo-iam sem tardança; ou por completo destruiria quaisquer contrariedades, embora para isso necessário se tornasse o sacrifício de alguém. O físico de mesquinha aparência, exótico e raquítico, enganava a quem o não conhecesse; extremamente nervoso, possuía uma força hercúlea, junto a rara agilidade (...) Jamais ele, alvo de tantas iras, objeto de ódios tão concentrados, se desviou do seu caminho, e uma vez traçado um plano, executava-o friamente, sem nunca volver arrependido”. (Soares, 1985, pp. 38-39).

Euclides da Cunha, outro que acompanhou de perto a contenda sertaneja, também deixaria registrado parecer sobre o célebre militar: “O aspecto reduzia-lhe a fama (...) A fisionomia inexpressiva e mórbida completava o porte desgracioso e exíguo. Nada, absolutamente, traía a energia surpreendedora e temibilidade rara de que dera provas, naquele rosto de convalescente sem uma linha original e firme: - pálido, alongado pela calva em que se expandia a fronte bombeada, e mal alumiada por olhar mortiço, velado de tristeza permanente (...) Naquela individualidade singular entrechocavam-se, antinômicas, tendências monstruosas e qualidades superiores, umas e outras no máximo grau de intensidade. Era tenaz, paciente, dedicado, leal, impávido, cruel, vingativo, ambicioso”. (Cunha, 1975, pp. 209-210).

Imbuído da seriedade com que sempre desempenhou o ofício militar e movido pelo ardor que nutria pela causa republicana, Moreira César, jamais se deixou curvar diante dos obstáculos. Nem mesmo quando percebeu que a sua própria vida estava em jogo. Durante o percurso para Canudos chegou a sofrer várias crises de epilepsia – mal que sempre o atormentou – ficando extremamente debilitado. Mesmo assim não desistiu da função de que fora investido e, com a determinação que lhe era peculiar, foi ao extremo, morrendo heroicamente em campo de batalha.


3 - Euclides da Cunha


Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha nasceu aos 20 de janeiro de 1866 numa fazenda modesta no município de Cantagalo, província do Rio de Janeiro. Aos três anos de idade fica órfão de mãe passando a viver com parentes. Em 1874, ingressa na escola iniciando, assim, o curso primário. Durante o curso secundário passa por vários estabelecimentos escolares chegando, em um destes, a ser aluno do positivista Benjamim Constant. Em 1885, desejando seguir a carreira de engenheiro, matricula-se na Escola Politécnica, mas não dispondo de recursos para cursá-la muda para a Escola Militar, de onde é expulso pouco tempo depois, por motivo de indisciplina. Casa-se com Ana Emília Ribeiro, filha do general republicano Frederico Sólon Ribeiro. Em 1890, matricula-se na Escola Superior de Guerra, onde conclui o curso de Artilheiro de Estado Maior e Engenharia, bacharelando-se em Matemática e em Ciências Físicas e Naturais. Trabalha na Estrada de Ferro Central do Brasil. Em 1897, é enviado pelo Jornal O Estado de São Paulo ao sertão da Bahia, com a finalidade de cobrir jornalisticamente a Guerra de Canudos. Em 1902, lança através da Editora Laemmert, do Rio de Janeiro, Os Sertões: Campanha de Canudos obra em que aborda de forma brilhante, o episódio que abalou o Brasil e a República. No ano seguinte, é eleito para uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Em 1904, viaja para o Alto Purus (região amazônica) chefiando missão demarcadora de fronteiras. No ano de 1906, toma posse na Casa de Machado de Assis sendo calorosamente saudado pelos colegas imortais. Morre em agosto de 1909, aos 43 anos de idade, em duelo com Dilermando de Assis, amante de sua esposa.

Em novembro de 1888, demonstrando fidelidade aos ideais republicanos, se insubordinou contra o ministro da Guerra do Império, quando da visita deste à Escola Militar, atirando no chão o próprio sabre. Tal fato lhe custou a prisão e, posteriormente, a expulsão da escola. Um ano depois, com a proclamação da República, se reintegrou ao Exército e foi promovido a tenente. Em 1896, divergiu de Floriano Peixoto quanto ao tratamento dado aos prisioneiros da Revolta da Armada (1893-1894) e se desligou definitivamente do Exército.

Euclides da Cunha foi responsável, entre outras coisas, pela descoberta de um Brasil que até então era desconhecido: o Brasil do interior. Ele trabalhou com a tese – a mesma da Escola Romântica - de que a construção da identidade nacional brasileira, que na sua visão estava ainda por acontecer, teria, inevitavelmente, que buscar seus fundamentos na profundidade do Brasil interiorano. Era lá que, segundo ele, se encontrava “o cerne da nossa nacionalidade”. Foi a partir desse princípio basilar, que Euclides orientou toda a sua obra, seja como engenheiro, seja como escritor.

Dedicado aos estudos das questões brasileiras, conforme pontifica Olímpio de Souza Andrade, Euclides valeu-se “da ciência para examinar sob vários aspectos a conformação do território brasileiro, seus ares, suas águas, sua flora, sua fauna, bem como a evolução do povo brasileiro, ressaltando conflitos entre estágios diversos de civilização. Mas principalmente valeu-se disso tudo, com engenho e arte, assim vendo o que os outros não viam, e dizendo-o numa linguagem clara e precisa, de rara beleza” (Andrade, sd. p. 9).

Esta é a tônica de toda produção literária de Euclides da Cunha, sendo que Os Sertões é a obra que melhor encarna a preocupação do autor. Dividido em três partes, a saber, a Terra, o Homem e a Luta, o livro faz ampla e profunda abordagem acerca da geografia do Nordeste e dos tipos humanos que povoam essa parte do Brasil, culminando com o conflito entre as forças legais e a gente de Antonio Conselheiro.


O crítico literário José Veríssimo, impressionado com a magnitude da obra em questão, assim se expressou: “O livro (...) do Sr. Euclides da Cunha, é ao mesmo tempo o livro de um homem de ciência, um geógrafo, um geólogo, um etnógrafo; de um homem de pensamento, um filósofo, um sociólogo, um historiador; e de um homem de sentimento, um poeta, um romancista que sabe ver e descrever, que vibra e sente tanto aos aspectos da natureza, como ao contato do homem (...)” (Veríssimo, 2003, p. 46). Trata-se da avaliação de quem realmente consegue penetrar o âmago da obra e dele subtrair o que há de mais substancial. Veríssimo (1857/1916), como Euclides, era um intelectual comprometido com as questões nacionais, principalmente aquelas relacionadas à Amazônia, chegando a produzir alguns trabalhos sobre o assunto. A crítica do autor de Cenas da Vida Amazônica, não só resume o conteúdo de Os Sertões, como também dá a dimensão exata do significado da obra e do autor.

Não é descabida, pois, a opinião dos que defendem que o filho ilustre de Cantagalo, exerceu papel fundador na cultura brasileira, a exemplo de Cervantes na Espanha, Goethe na Alemanha e Camões em Portugal.

Como homem de ciência, sintonizado com o que havia de mais avançado no âmbito da intelectualidade, e imbuído dos ideais do positivismo - corrente filosófica que defendia o primado da razão como único meio de construção da civilização e, por conseguinte, da ordem e do progresso dos povos - além de intransigente defensor da causa brasileira, Euclides da Cunha foi firme e enérgico na defesa das suas convicções mais profundas. Termina se decepcionando com a República – regime que ele sempre defendeu – quando percebe que esta não estava conseguindo responder à expectativa do povo brasileiro. E, decepcionado, se transforma em crítico ferrenho do modelo político inaugurado por Deodoro da Fonseca.


4 - Conclusão


Há, portanto, certa afinidade entre Antonio Conselheiro, Moreira César e Euclides da Cunha. Afinidade não em termos de princípios ou ideais, pois cada um tinha os seus. Falamos de afinidade em termos comportamentais, principalmente no que diz respeito à firmeza de postura com que todos levaram a cabo a defesa das suas convicções. O modo enérgico no agir, a seriedade no desempenho do ofício, a crença inabalável nos valores que cultivavam, a maneira entusiástica e desprendida com que perseguiam os seus objetivos..., são qualidades que, a nosso ver, se aplicam perfeitamente às três personalidades. E é exatamente nestes aspectos que, não obstante as suas profundas diferenças, o beato, o coronel e o escritor, terminam se cruzando, se aproximando e se identificando. Talvez seja este paradoxo, um dos motivos pelos quais, ainda hoje, os três continuam despertando a atenção e o interesse de todos quantos deles se aproximam.



José Gonçalves do Nascimento

(Membro da Academia de Ciências, Artes e Letras de Senhor do Bonfim - Bahia)

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BIBLIOGRAFIA

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ASSIS, Judith Ribeiro de /ANDRADE, Jéferson de. Ana de Assis, História de um Trágico Amor. 10ª ed. Irradiação Cultural, Rio de Janeiro, 1987.

ANDRADE, Olímpio de Souza. Os Sertões de Euclides da Cunha. Ediouro, Rio de Janeiro, s.d.

BENICIO, Manoel. O Rei dos Jagunços. Editora Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 1997.

CALASANS, José. No Tempo de Antônio Conselheiro. Livraria Progresso Editora, Salvador, s.d.

CUNHA, Euclides da. Diário de uma Expedição. Comp. das Letras, São Paulo, 2000.

------------------ Os Sertões. 2ª ed. Editora Cultrix, São Paulo, 1975.

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MARCONDES, Ayrton César. Canudos, as Memórias de Frei João Evangelista de Monte Marciano. Editora Best Seller, São Paulo, 1997.

NOGUEIRA, Ataliba. Antônio Conselheiro e Canudos. Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1978.

RABELLO, Sílvio. Euclides da Cunha. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1983.

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SOARES, Henrique Duque Estrada de Macedo. A Guerra de Canudos. 3ª ed. Philobiblion, Rio de Janeiro, 1985.

VERÍSSIMO, José. Os Sertões, Campanha de Canudos, por Euclides da Cunha. In Juízos Críticos, os Sertões e os olhares de sua época. Editora UNESP, São Paulo, 2003.

VILLA, Marco Antonio. Canudos – O Povo da Terra. Ática, São Paulo, 1995

3 comentários:

  1. Iniciei hoje como "Seguidor" do blog e vejo que foi uma boa escolha. Dedicarei mais tempo para saborear os textos bem escritos e fundamentados.
    Vale a pena gastar esse tempo para deixar algo que seja, de fato, seu. Blog para reproduzir textos de outros, não acho interessante. Parabéns! Avante!

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  2. Obrigado pela adesão e pelo belíssimo comentário.

    Eu, também, estou atento aos seus textos

    José Gonçalves

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  3. Obrigado pela adesão e pelo belíssimo comentário.

    Eu, também, estou atento aos seus textos

    José Gonçalves

    28 de dezembro de 2009 04:48

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