Uma das inúmeras questões que se colocam sobre Canudos, é a que diz respeito à sua natureza político-ideológica. Seria Canudos uma comunidade milenarista? Tratar-se-ia, ao invés, de uma experiência marxista? Ou haveria outra possibilidade de interpretação?
Para os que enveredam pelo viés do messianismo, a exemplo de Maria Isaura Pereira Queiroz, Canudos seria uma espécie de nova Jerusalém, onde os crentes aguardavam a iminência do juízo final, furtando-se às leis da república e às influências do anticristo. Uma comunidade com tal perfil não poderia nutrir a menor expectativa de longo prazo descuidando-se de questões vitais como a atividade econômica e a instrução formal. Como, então, se explicaria a existência de escola em Canudos, já que a escola é um investimento que, necessariamente, aponta para o futuro? A mesma questão poderia ser posta em relação ao trabalho, considerando que esta atividade constituiu um dos pilares da dinâmica canudense, em oposição ao saque - prática que, aliás, seria mais natural em um grupo que se propusesse à espera ansiosa pelo fim dos tempos.
Por sua vez, os que optam pelo viés marxista, como Rui Facó e Edmundo Moniz defendem a idéia de que “Canudos foi a tentativa heróica de estabelecer uma sociedade igualitária no sertão”, estando aí presentes os elementos intrínsecos à luta de classes. Há, todavia, dois aspectos que tornariam insustentável uma tese dessa natureza: O primeiro é o fato de não haver, em toda obra manuscrita de Antônio Conselheiro, uma linha sequer em que o beato do Belo Monte condene a propriedade privada dos meios de produção e ao mesmo tempo defenda a supressão das desigualdades sociais. O segundo é o de que nunca houve, na verdade, um modo de vida igualitário dentro do arraial de Canudos. A cidade estava dividida entre ricos e pobres. Entre uma minoria abastada, a exemplo de Joaquim Macambira e dos irmãos Vila-Nova que detinham o controle das terras e do comércio local, e uma grande maioria de gente pobre que migrava para Canudos em busca de dias melhores. Em compensação, a comunidade era unida pela prática da solidariedade em que as pessoas eram ajudadas através das coletas que se faziam, além de poderem cultivar livremente as terras que a outros pertenciam.
Uma terceira possibilidade – descartadas as anteriores – é a que aponta Canudos como uma EXPERIÊNCIA ALTERNATIVA DE SOCIEDADE. Experiência esta, que se deveu ao fato de Antonio Conselheiro não ter reconhecido o sistema republicano inaugurado naqueles dias e, por isso, ter optado por construir uma comunidade, autônoma e completamente insubmissa às regras do novo regime. Compunha essas regras, por exemplo, o casamento civil – o único reconhecido oficialmente. Por essa e por outras razões, a República era má por natureza, não podendo advir dela nada que pudesse ser benéfico. Assim, identificada como a manifestação do “anticristo” ou a própria “lei do cão”, se tornava inadmissível que os crentes, fiéis aos princípios mais ortodoxos, a ela se submetesse. O arraial de Canudos, situado às margens frescas e refrescantes do Vaza-Barris, se apresentava, então, como o “refúgio” seguro e sagrado onde os sertanejos podiam “repousar” tranqüilos, longe do jugo de um sistema estatal que, entre outros malefícios, começava, por meio dos municípios, a penalizar os pobres com a cobrança de tributos. Pautada no trabalho e na oração, e sob a liderança suprema de Antonio Conselheiro, a comuna sertaneja, em apenas três anos de existência, se tornou um dos maiores centros populacionais do sertão sendo responsável, inclusive, pela sua auto-sustentação.
Contudo, o fantasma da Monarquia acabou cruzando os tortuosos caminhos da República e esta, atiçada pela neurose da restauração do velho regime, decidiu investir contra a comunidade de Canudos. E Canudos se torna vítima da mediocridade de um sistema político que, para se consolidar teve que apelar para a repressão.
Ficou, porém, o exemplo de um povo que buscou na fé, na organização e na solidariedade, a base para a sua auto-afirmação.
José Gonçalves do Nascimento
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