De 1896 a 1897, o sertão da Bahia transformou-se em cenário de um dos acontecimentos mais marcantes da história nacional: a Guerra de Canudos. Resultado do confronto entre as elites republicanas e a Comunidade de Antônio Conselheiro, a guerra deixou um saldo de aproximadamente quinze mil mortos, sendo cinco mil soldados e dez mil sertanejos.
Ao esquadrinhar a área geográfica onde se deu o conflito, constata-se de imediato que Nordestina também foi palco daquele acontecimento. Isto se explica porque a via que, na época, dava acesso a Canudos – e que foi trilhada por todos aqueles, que de uma forma ou de outra, estiveram envolvidos na trama sertaneja – cruzava dois lugarejos que atualmente integram o território do município de Nordestina: Serra Branca e Tanquinho. A literatura canudense é farta de informação a este respeito. Quase todos os intelectuais que acompanharam de perto a luta sangrenta, ao relatarem o fato, fazem referência a ambas as localidades. É o que veremos:
SERRA BRANCA
Começamos por enfocar a histórica comunidade de Serra Branca. Dentre as muitas informações sobre o local, nós priorizamos duas, por entendê-las de maior relevância. A primeira, data do dia seis de setembro de 1897 e tem como autor Lélis Piedade, correspondente do Jornal de Notícias de Salvador e secretário do Comitê Patriótico da Bahia, organização não governamental, criada para socorrer as vítimas de Canudos: "(...) Finalmente chegamos à Serra Branca (...) Suas casas também abandonadas inteiramente. Ao alto vimos uma, bem parecida e para lá nos dirigimos (...). O nosso tropeiro Antônio, um tabaréu, foi buscar água à meia légua distante. Quando voltou nos levantamos todos e aquela água teve sabor de uma deliciosa bebida, ela que, aliás, era turva e pesada. Comemos em conchas de ouricuri, servindo de garfos uns espetos. (...) a cozinheira e uma companheira, auxiliares que todos nós bendizemos pelo modo por que se portam – hospitaleiras e expeditas – foram ao tanque em que Antônio tinha ido antes buscar água. Não acertaram com o lugar, pelo que foi o tropeiro, acompanhado delas e do soldado que nos acompanhava, desempenhar a incumbência. Deu-se uma cena de riso e que entristeceu, no entretanto. O soldado foi banhar a cabeça, que lhe doía, no tanque e caiu nele, ficando totalmente molhado (...)" (PIEDADE, 2002, p. 165).
No dia 18 de outubro de 1897, o correspondente do jornal Gazeta de Notícias do Rio Janeiro, Fávila Nunes, retornando de Canudos, passa por Serra Branca e de lá escreve: "Estou aqui apenas descansando [diz ele] e esperando o meu povo que vem atrás. (Serra Branca) é uma fazenda abandonada, com quatro casas. Na melhor encontrei três fogões fumegando como nas outras e em todos os pontos destes caminhos cheios de viandantes, onde não se precisa gastar fósforos(...) Está aqui ao lado da casa uma sepultura nova, com uma cruz tosca. É um pobre que não suportou a viagem".(GALVÃO, 1977, pp. 223-224).
TANQUINHO
Outra localidade a ser destacada, dada a sua importância histórica no contexto da luta fratricida, é Tanquinho. Localizado, atualmente, às margens da pista asfáltica que liga a cidade de Nordestina à Estrada do Sisal, Tanquinho é uma das referências mais eloqüentes no que tange à geografia da Guerra de Canudos. O seu nome foi imortalizado pela maior autoridade da historiografia canudense: Euclides da Cunha. Em 1897, Euclides da Cunha viajou – a convite de Júlio Mesquita, então diretor do jornal O Estado de São Paulo – ao sertão da Bahia como correspondente de guerra ao lado da quarta expedição contra Canudos. Em Tanquinho, ele passou a noite do dia quatro para o dia cinco de setembro de 1897, onde escreveu valioso artigo para o já mencionado jornal paulista. O célebre escritor, conforme ele mesmo conta, pernoitou sob “céu fulgurante” dispensando o abrigo das duas casas ali existentes.
Dada a magnitude do testemunho euclidiano, transcreveremos, mesmo que parcialmente, todas as referências sobre Tanquinho presentes nas três obras em que o autor aborda o episódio de Canudos que são: Caderneta de Campo, Diário de Uma Expedição e Os Sertões. Antes, porém, ressalvamos que o modo “áspero” como o jornalista se refere ao lugarejo, traduz a mentalidade preconceituosa com que não só ele, mas praticamente toda elite brasileira, encarava o interior do Brasil naquela época. Por isto, o teor de tais escritos, a nosso ver, em nada desabona o valor histórico dos mesmos.
Comecemos pela Caderneta de Campo: "Chegamos a Tanquinho a 1 hora da tarde, acampamos e partimos às 6 da manhã do dia 5. Tanquinho lugarejo insignificante – uma casa velha e um rancho inutilizado(...) Água infame, infamíssima, de um poço pequeno onde há seis meses bebem todos os cavalos, banham-se todos os cavalos e lavam-se todas as feridas(...) Fotografei esse lugar insípido. Flora jasmim dos tabuleiros e mandacaru (Tamarineiro) – Noite estrelada, muito frio à madrugada. O meu aneróide registrou uma altura de 30 metros de Queimadas. Temperatura, termômetro exposto 16º. "(CUNHA, 1975a, p. 10).
É ali que na noite do dia 4 de setembro de 1897 “sob a ramagem opulenta de um juazeiro” ele escreve para o jornal O Estado de São Paulo (O texto na íntegra pode ser encontrado em Diário de Uma Expedição): "(...) Avistamos o Tanquinho com a íntima satisfação dos que se dirigem para um oásis (...) Às sete horas da noite, em companhia do comandante do regimento policial da Bahia e dois companheiros do estado-maior, dirigi-me ao Tanquinho que batiza o lugar (...) É uma água pesada que não extingue a sede. Às oito horas todo acampamento dormia. Consulto o meu aneróide e vejo que estamos a trinta metros sobre Queimadas. Escritas estas notas, não sei se poderei dormir. Felizmente um céu fulgurante e amplo é dossel do meu leito rude de soldado – um selim, uma manta e um capote (...)". (CUNHA, 2000, pp. 148-152).
Tanquinho figura também nas páginas vibrantes d’Os Sertões, sem dúvida, a obra maior da Literatura Brasileira que, dividida em três partes, isto é, A Terra, O Homem e A Luta, faz ampla abordagem sobre a Guerra de Canudos. Traduzido para 13 idiomas e contando no Brasil com mais de 80 edições, este livro tem sido, até hoje, uma das obras mais lidas e difundidas no mundo inteiro. Daí extraímos o próximo fragmento: (Tanquinho é) "(...) um sítio meio destruído, duas casas em abandono imersas na galhada fina do alecrim-dos-tabuleiros, de onde irrompiam cereus esguios e melancólicos. O tanque que o batiza provém de um afloramento granítico originando reduzida mancha de solo impermeável sobre que jazem, estagnadas, as águas livres da sucção ávida do terreno de grés, envolvente. À sua borda, como à de todas as ipueiras marginais à estrada, sesteavam dezenas de feridos, e acampava a recovagem dos comboios. Mas isto sem a azáfama característica e ruidosa dos abarracamentos, soturnamente, silenciosamente; acúmulo entristecedor de homens macilentos, em grupos imóveis, paralisados na quietude de exaustão completa". (CUNHA, 1975b, p. 343).
Como vemos, Tanquinho e Serra Branca tiveram papel excepcional no que diz respeito aos acontecimentos que no final do século XIX, abalaram o Nordeste Brasileiro. Em meio a mais extrema escassez, os dois lugares surgiam como verdadeiros oásis aos olhos daqueles que por ali transitavam, em função da Guerra de Canudos. Tanto em Serra Branca como em Tanquinho, além do acolhimento que se dispensava aos que por lá passavam, havia algo muito precioso e muito caro a todos: água de beber. Ainda que não fosse da melhor qualidade.
Estas duas comunidades são, sem dúvida, dois grandes marcos da memória sertaneja. Isto confere a Nordestina, evidentemente, o status de município detentor de enorme patrimônio histórico e cultural, inclusive com considerável potencial no campo da pesquisa e do turismo cultural.
José Gonçalves do Nascimento
Nordestina - Bahia
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BIBLIOGRAFIA BÁSICA
CUNHA, Euclides da. Caderneta de Campo. Ed. Cultrix/MEC, São Paulo, 1975a.
------------------------------ Diário de uma Expedição. Comp. das Letras, São Paulo, 2000.
------------------------------ Os Sertões. 2ª ed. Editora Cultrix, São Paulo, 1975b.
GALVÃO, Walnice Nogueira. No Calor da Hora. Editora Ática, São Paulo, 1977.
LEVINE, Robert. O Sertão Prometido. Edusp, São Paulo, 1995.
OTTEN, Alexandre. Só Deus é Grande. Edições Loyola, São Paulo, 1990.
PIEDADE, L. Histórico e Relatório do Comitê Patriótico, Portfolium, Salvador, 2002 .
VILLA, Marco Antonio. Canudos – O Povo da Terra. Ática, São Paulo, 1995.
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