
A cultura é uma das dimensões essenciais da existência humana e, como tal, encontra-se na base da nossa identidade individual e coletiva. Sociedade alguma, jamais conseguirá se consolidar sem um lastro cultural que possa garantir a sua identificação. Deste modo, nenhum grupo humano pode ser desprovido de cultura.
Contudo, longe de constituir-se um bloco monolítico, a cultura se apresenta em cada realidade, de forma peculiar e diferenciada. Por isso é preferível falar aqui de cultura no plural. É nesta perspectiva que situamos o conceito de cultura popular, enquanto conjunto de manifestações culturais produzidas e consumidas por um mesmo grupo social. Manifestações, que por estarem ligadas às condições de vida dos grupos que as produzem, terminam, naturalmente, refletindo a cosmovisão destes mesmos grupos.
Com sabedoria, pontifica Frei Hermínio B. de Oliveira, no seu estudo sobre a religiosidade popular no nordeste brasileiro: “Arraigada no dia-a-dia da vida do povo, a cultura popular não pode ser imaginada a partir de uma teoria “a priori”, mas deve ser descoberta através da observação das manifestações populares. Seu traçado fundamental é, portanto, o seu enraizamento nos costumes de cada um. A linguagem popular nos dá uma idéia aproximada da cultura de um povo, de seus valores e da sua maneira de ver a vida”. (OLIVEIRA, 1985, pp. 17-18).
A cultura dita canônica, ou erudita, é igual em qualquer parte do mundo, pelo menos nos seus traços fundamentais. Ao passo que a cultura popular se assenta na singularidade. Ela jamais se repete. Cada grupo humano possui a sua. E é através dela que estes mesmos grupos se caracterizam, se identificam, se distinguem. É justamente aí, que paira o valor e a grandeza da cultura popular.
Foi compreendendo assim, que o romantismo germânico foi buscar na cultura popular a base para a construção da tradição cultural alemã. É por demais conhecido o esforço de intelectuais como Herder e os irmãos Grimm, no tocante ao resgate e à preservação das tradições populares, principalmente aquelas relacionadas ao meio rural. São frutos deste trabalho, por exemplo, clássicos da literatura infantil como Chapeuzinho Vermelho, Cinderela e Branca de Neve. Nenhuma outra tradição nacional foi formada com tanta ênfase no tema da tradição popular como a da nação alemã.
Na transição do século XIX para o século XX, o engenheiro e escritor Euclides da Cunha afirmava ser o interior e não o centro civilizado, o cerne da nacionalidade brasileira. Na mesma época e na mesma esteira de pensamento, estão escritores como Afonso Arinos, Sílvio Romero e Araripe Júnior. Todos comprometidos com uma produção intelectual voltada para a valorização das coisas do interior. Mais tarde, será Guimarães Rosa a penetrar os sertões das Minas Gerais em busca do substrato cultural das populações campesinas – a matéria prima que deu alma, vida e forma às suas criações literárias.
A cultura popular, no entanto, vem sendo paulatinamente substituída pela chamada cultura de massa, veiculada diuturnamente através dos grandes veículos de comunicação, principalmente a televisão. Voltados apenas para os interesses do grande capital, tais veículos, além de não demonstrarem o menor respeito para com as formas de cultura oriundas do povo, vêm trabalhando sistematicamente no sentido de esvaziá-las ou mesmo suplantá-las. O objetivo é muito claro: privar o povo do seu cabedal cultural, para depois cooptá-lo à propaganda mercantilista.
Na região sisaleira não é diferente. Conforme observa o professor José Plínio de Oliveira da Universidade Estadual da Bahia – UNEB/Campus IV, “Muitas das manifestações culturais de domínio popular da Região Sisaleira do Estado da Bahia acham-se agora ameaçadas de extinção. Há um vácuo que está sendo alargado pela circulação intensa da indústria cultural em detrimento das culturas de raízes populares nestes espaços sertanejos”. (OLIVEIRA, 2006, p. 09). O que vem provocando, segundo a observação do acadêmico, uma verdadeira desertificação nostálgica.

Entre as diversas manifestações culturais existentes na região em foco, destacamos: a banda de pífano, o verso de cordel (também chamado ABC), o repente de viola, o teatro, a fogueira de São João, o samba de roda, o reisado, a corrida de argolinha, a quadrilha de São João, o roubo do santo, o forró pé de serra, a reza, a novena, a festa de padroeiro, o batalhão (ou mutirão), o caruru, o bumba meu boi, a corrida de saco, o quebra pote, o pau de sebo, a capoeira, a brincadeira de roda, a cantiga de casa de farinha, o artesanato, (nas suas diversas modalidades), entre outras.
Muitas destas manifestações encontram-se, de fato, em via de desaparecimento. De tal modo, que se não forem tomadas as devidas providências, é bem provável que, dentro de alguns poucos anos, os nossos filhos ou netos não saberão o que venha a ser um reisado, ou mesmo uma quadrilha de São João.
Urge, portanto, que se implemente uma política voltada para a cultura, em especial a cultura popular. Um trabalho neste sentido teria que obedecer, no nosso entendimento, a seguinte dinâmica: 1) levantamento de todas as formas de cultura existentes em cada município; 2) elaboração de um plano municipal de cultura que contemple todas as modalidades de manifestação cultural; 3) acompanhamento e monitoramento de todas as manifestações culturais através de capacitações, seminários e oficinas; 4) divulgação das manifestações culturais através de exposições, amostras, folders, e também por meio dos veículos alternativos e democráticos, como é o caso das rádios comunitárias, a nosso ver, um dos meios mais eficazes, dado a sua proximidade com o público alvo e a sua identificação com a realidade local; 5) inserção do tema cultura popular na grade curricular, considerando que a escola é um dos meios de maior eficácia na tarefa de resgate, preservação e promoção destas manifestações populares.
Desta forma, estaremos dando um grande passo na construção da plena cidadania, uma vez que cidadania passa também pelo respeito que se devota à memória, às tradições, à cultura... E não esqueçamos nunca de que o nível de civilidade de um povo dependerá sempre da forma como este mesmo povo lida com o seu patrimônio cultural.
José Gonçalves do Nascimento
Senhor do Bonfim
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BIBLIOGRAFIA
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FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Obras completas. Instituto Nacional do Livro, São Paulo, 1969.
FILHO, Melo Morais. Festas e Tradições Populares do Brasil. Conselho Editorial – Senado Federal, Brasília, 2002.
GUIMARÃES ROSA, João. Grande Sertão: Veredas. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2006.
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OLIVEIRA, Frei Hermínio B. de. Formação Histórica da Religiosidade Popular no Nordeste. Edições Paulinas, São Paulo, 1985.
PENTEADO, Maria Heloísa. Contos de Grimm. Ática, São Paulo, 1996.
ROMERO, Sílvio. O Brasil Social e Outros Estudos Sociológicos. Conselho Editorial – Senado Federal, Brasília, 2001.
SANTANGELO, Paolo. Storia della Cina – Dalle origini ai nostri giorni. Tascabili Economici Newton, Roma, 1994.
VERÍSSIMO, José. Os Sertões, Campanha de Canudos, por Euclides da Cunha. In Juízos Críticos, os Sertões e os olhares de sua época. Editora UNESP, São Paulo, 2003.
ResponderExcluirAcho ainda suspeito e contraditória a expressão “cultura popular”. Cultura é uma só, seja ela produzida pelo povo ou não. Cultura erudita não seria uma forma de reduzi o que hoje chamamos de cultura popular? Toda cultura antes da massificação é popular. Não se pode criar definições para cultura. Cultura erudita é aquela feita por intelectuais, por aqueles que estão acima da capacidade de um povo? E o que fez Vila Lobos com as canções populares? As tornou eruditas? Elas deixaram de ser popular por conta de terem sido musicadas por um músico de formação erudita? Bom, cabe aqui uma reflexão sobre as formas de maniqueísmos que levam a supressão daquilo que independente dessa categoria "popular" é a base, o substrato para tantas outras obras, inclusive aquelas chamada de ERUDITAS.
IVAN SANTTANA